Ir para o conteúdo

A discoteca de Rubens Paiva: Uma trilha sonora contra a ditadura

Entre o exílio e a resistência, sua coleção de discos revela uma alma inquieta e apaixonada pela liberdade

Logo após assistir à estreia de Ainda Estou Aqui (2023), de Walter Salles, na Globoplay, um detalhe visual me fisgou em meio à narrativa intensa: os discos de vinil que aparecem na casa da família Paiva. Pequenos, quase silenciosos, mas repletos de significado.

A curiosidade me levou à pesquisa — identifiquei os álbuns, mergulhei em suas faixas e contextos — e transformei essa descoberta em matéria, para refletir o quanto a música dizia sobre o gosto, a sensibilidade e o espírito contestador de Rubens Paiva.




Mais que parte da cenografia, esses discos formam uma trilha sonora íntima da resistência: Juca Chaves, T. Rex, Caetano Veloso e King Crimson compõem um mosaico afetivo e político que ainda ecoa. São registros de inconformismo e beleza em meio ao silêncio forçado da ditadura. E por trás dessa memória preservada, está Eunice Paiva — mulher que transformou ausência em força, dor em legado, e que segue mantendo viva a história que tentaram apagar.

Juca Chaves – Take Me Back to Piauí (1970, compacto)
Juca Chaves era um cronista musical do absurdo brasileiro. Sua obra funde humor, sátira política e uma fina sensibilidade musical. O compacto com “Take Me Back to Piauí” é um exemplo clássico de sua verve irônica e crítica — uma falsa canção de amor ao Nordeste que, na verdade, escancara o preconceito das elites, o atraso político e o autoritarismo disfarçado de ufanismo. Ao exibir esse compacto entre os discos de Rubens Paiva, o filme sugere algo além do bom humor: Rubens reconhecia e valorizava o poder da sátira como instrumento político. A escolha de Juca Chaves mostra que, além do gosto pelo rock de vanguarda e pela melancolia de exílio de Caetano, havia espaço para a crítica afiada e debochada — aquela que escapa da censura pela inteligência e pelo riso.

 

 

T. Rex – T. Rex (1970, compacto)

Na primeira imagem, o compacto da banda T. Rex apresenta faixas como “Ride a White Swan”, “Is It Love” e uma releitura de “Summertime Blues”. Lançado no início da transição de Marc Bolan do folk psicodélico do Tyrannosaurus Rex para o glam rock que o consagraria, esse disco marca um ponto de virada na estética do rock britânico. A presença desse compacto em meio ao acervo de Rubens Paiva sugere um ouvido atento às novas tendências, e uma preferência por sons que misturam poesia, atitude e transformação. “Ride a White Swan”, em especial, simboliza esse espírito místico e contestador.

 

 

Caetano Veloso – Caetano Veloso (1969, o “álbum do exílio”)
A segunda imagem mostra o lendário disco de Caetano gravado em Londres, durante o exílio forçado imposto pela ditadura militar brasileira. Este álbum é uma das obras mais introspectivas e doloridas da música brasileira. Canções como “London, London”, “Maria Bethânia” e “A Little More Blue” soam como cartas melancólicas enviadas de uma alma ferida, mas resistente. A escolha desse disco reforça a dimensão política e sensível de Rubens — alguém que, como Caetano, foi atravessado pelas feridas do autoritarismo, mas se manteve com espírito artístico e humanista.

 

 

King Crimson – In the Court of the Crimson King (1969)
Por fim, o clássico absoluto do King Crimson, com sua capa icônica e sua sonoridade densa e cerebral. Este disco inaugurou o rock progressivo com potência e vanguarda. Com faixas como “21st Century Schizoid Man”, um hino distópico e politizado, e “Epitaph”, carregada de lirismo e angústia existencial, o álbum representa uma escuta mais sofisticada e desafiadora. Rubens, ao ter esse disco em casa, se revela como alguém aberto à complexidade estética, interessado em propostas sonoras que desafiam convenções e expandem horizontes.

 

 

A trilha sonora implícita na casa de Rubens Paiva é tão poderosa quanto o próprio roteiro do filme. Juca Chaves, com sua sátira afiada em “Take Me Back to Piauí”, traz a crítica social disfarçada de humor, rindo onde só se podia rir para não chorar; O compacto do T. Rex sinaliza uma paixão por novos sons e simbologias místicas; Caetano Veloso evoca o exílio, a dor e a resistência; King Crimson representa o mergulho profundo em tempos caóticos e introspectivos.

Ouça como Rubens

Juntos, esses discos formam um painel emocional, político e cultural — o retrato sonoro de um homem livre, mesmo sob o peso da repressão. Rubens Paiva não ouvia apenas música: ele cultivava pensamento, provocação e beleza em forma de som. Sua vitrola era território de liberdade. Cada faixa girava como um gesto de resistência íntima, um contraponto poético à brutalidade do regime.

Hoje, revisitar esses discos é mais que um exercício de memória: é um ato de escuta ativa da história. Em tempos em que tantas vozes ainda tentam ser silenciadas, deixar tocar o que Rubens ouvia é reafirmar o direito à arte, à crítica e à liberdade — valores que, como ele, continuam ecoando, mesmo quando tentam calá-los. Porque enquanto houver música, haverá lembrança. E enquanto houver lembrança, haverá luta.

Gostou dessa publicação?

Clique em uma estrela para avaliar!

Classificação média 0 / 5. Contagem de votos: 0

Nenhum voto até agora! Seja o primeiro a avaliar esta publicação.





Link curto da publicação: https://overrocks.com.br/gql3
Redação

Redação

Neder de Paula é fundador, CEO do portal e web rádio OverRocks. Designer, webdesigner, videomaker, apaixonado pela família, quadrinhos, cinema, tv, UCM, DCU, metalhead desde os 12 anos e curador musical na Divulguei e Groover.